Recentemente foi lançado o livro
"Poliamor e Relações Livres: Do amor à militância contra a Monogamia
compulsória". Ele foi recebido com certa euforia no meio não-monogâmico,
especialmente no meio RLi. Bom, eu o li; e o texto a seguir é a avaliação que
fiz do livro. Espero que a crítica sirva para melhorar o trabalho dos que
se dispõem a estudar o assunto e que sirva para desfazer algumas confusões do
público.
O texto começa colocando muito bem
qual será seu erro fundamental: analisar a partir dos discursos e não das
práticas. Como demonstro na minha monografia, é impossível estudar o poliamor
apenas do ponto de vista dos discursos. Além disso, há todo um espectro visível
das Relações Livres que não está presente no discurso oficial. Também é
importante localizar que essa é uma abordagem possível, mas que precisa de um
estudo aprofundado da prática para não cair no idealismo e na credulidade,
tornando-se mero reprodutor de discursos construídos como se fossem expressão
direta da realidade, ou como se não houvesse uma realidade fora do discurso, o
que já está mais que provado que não é verdade.
Por causa desse erro teórico
fundamental, o livro qualifica o poliamor como um movimento, como se esse
fenômeno amplo se resumisse apenas a seu movimento organizado e como se, a partir
do momento em que surge o termo, estaria fundado o movimento - o que é um
tremendo erro. Além de as origens da significação atual do poliamor serem na
década de 1990 (e não de 1980, como afirma o livro), o movimento poliamorista
só foi surgir muito depois.
Como demonstro na minha monografia, o termo foi
cunhado para dar nome a práticas que pré-existiam a ele e sobre as quais não se
havia um discurso, ou seja, havia uma prática mais ampla que a terminologia do
poliamor. Se basear, portanto, na terminologia ou nos discursos é reduzir o
poliamor de maneira brutal. Isso gera erros fortes, como tratar a compersão
como uma invenção dos poliamoristas e não mais uma categoria criada para
nominar uma experiência concreta. Ao mesmo tempo, faz com que o foco do discurso poli na afetividade - consequência de não haver nenhuma outra forma de não-monogamia
que dê conta disso - pareça que a prática poliamorista seja focada no afeto múltiplo, o
que não é verdade para todos. Isso vai servir à frente para justificar críticas
improcedentes ao Poliamor, como o tratamento da polifidelidade como se fosse a
totalidade do Poliamor.
Mas nem precisamos chegar a isso tudo,
por que o livro possui o poliamor praticamente apenas no nome. Ele se restringe
a falar centralmente do RLi e a partir do discurso de alguns RLis. O nome
"poliamor" na capa é apenas um atrativo para os desavisados.
Pretendo, nessa crítica, não entrar em
todos os aspectos problemáticos, como a redução da colonização do século XVIII
a uma biopolítica e à normalização, conceitos que nem ao menos são
explicados... Meu foco aqui é o Poliamor.
É interessante como o estudo tem bases
teóricas tão contraditórias e até questionáveis... Engels é citado, na sua obra
mais criticada nas ciências sociais, ao lado de uma versão ultra idealista da
visão foucaultiana. Um verdadeiro Frankenstein teórico.
Um conceito problemático é o de Estado
incluindo família, igreja, escola e medicina. Essa visão trata como se fossem
parte de uma mesma instituição um governo de uma cidade e a atuação de médicos
privados ou mesmo de pais sobre os filhos. Isso é coerente com a leitura
foucaultiana, mas é uma das partes piores de se apropriar.
A visão também que qualquer exigência
ao Estado é uma forma de sujeição é extremamente problemática e sustenta uma
posição dicotômica que chega a ser pueril: ou não se exige e se "rebela" ou se exige e se "sujeita". Infelizmente, para muitos, isso é
uma visão básica. Ainda mais com essa expansão do Estado para tantas áreas,
exigir delas reconhecimento é impôr ao "Estado" a nossa existência,
com todas as contradições que isso impõe à mononormatividade. Mas como ela não
trabalha nem com "mononormatividade", nem com "polifobia",
fica invisível para ela a necessidade da busca por reconhecimento e direitos.
Em determinado momento a autora comete
o terrível erro de tratar de polyfamilies como se fosse um termo exclusivamente
utilizado para famílias com polifidelidade. Isso cumpre um triplo papel negativo:
primeiro, de confundir quem tem contato com o termo; segundo, por insistir na
definição de família (pelo menos no campo da família por associação) como um
núcleo exclusivista (que ela apenas expandiu para mais de uma pessoa); e, terceiro, por passar a impressão de que polifidelidade e Poliamor são sinônimos,
o que é absolutamente incorreto (ao contrário, os estudos sobre Poliamor no
Brasil apontam a escassez de polifiéis e mesmo a rejeição da polifidelidade
pela maioria dos poliamoristas).
A concepção de heteronormatividade
para tratar da questão da não-monogamia é também uma opção problemática. Ou o
Poliamor é uma orientação sexual (mas aí como ser poli e hetero como muitos
somos?) ou a normatividade que diz respeito à Monogamia é algo que deve ser
entendido particularmente. Não se pode tratar também como se a Monogamia não
fosse um fato social próprio, com suas características próprias... Afinal,
sociedades polígamas são igualmente heteronormativas, mas não são monogâmicas.
É um fato premente que a heteronormatividade não é necessariamente monogâmica e
tratá-la assim é capitular ao etnocentrismo, a visão de como se nosso povo
fosse o ponto de vista do "universal".
Chamar também o preconceito de
um casal swinger com um casal RLi de heteronormatividade é tremendamente
confuso - um casal swinger pode não ser hetero e sua discriminação nada tinha a
ver com heterossexualidade e vidas LGBT. Afinal, os swingers não são
monogâmicos, pelo simples fato de que a Monogamia é uma relação de
exclusividade afetiva e sexual a dois - e o swing não tem exclusividade sexual.
Esconder o poder da ideologia
monogâmica e da instituição monogâmica tira o papel real que tem a ruptura com
ela - é preciso falar de mononormatividade e polifobia. O casal não-monogâmico,
swinger, pode ser polifóbico com quem rompe a barreira da exclusividade
afetiva, que é o grande ponto de ruptura contemporâneo que o Poliamor
representa. Mais que sexo, rompemos com a exclusividade afetiva a dois - e isso
que é verdadeiramente ameaçador para o status quo, pois é monogâmico.
É também incômoda a forma idealizada
com que se fala da teoria queer e mesmo que se a tenha como verdade. Ela surge
criticando que se ponha algo como verdade e que se tenha categorias coletivas, além de Identidades, fazendo com que a Luta seja no micropoder, nas
"dobras" do poder (não lembra power rangers?), rejeitando o
reconhecimento social e a luta por direitos como um centro de atuação. Ou seja,
na realidade, é uma teoria esquizofrênica e desmobilizadora, retira dos
oprimidos o compromisso da luta contra suas opressões pois não se identificam
nas categorias que objetivamente existem na sociedade ou que devem existir para
dar forma à luta. É uma ideologia da derrota e da completa ausência de
auto-conhecimento e mútuo reconhecimento.
Um erro também premente no discurso da
autora é a ideia de que a não-monogamia se encontra espalhada pela sociedade,
rejeitando o termo "oculta" para caracterizar as práticas
não-monogâmicas. Ora, mas isso é um completo absurdo. É evidente para qualquer
um com alguma experiência no Poliamor que a maioria das relações são feitas às
escondidas de parentes, amigos e colegas de trabalho, principalmente por causa
do preconceito que se sofre. É também evidente em todas as nossas elaborações
que a maioria das pessoas identifica monogamia e relacionamento como sinônimos,
não chegando ao menos a conceber a possibilidade de uma relação não-monogâmica.
Mas essa classificação absurda vem do engano ingênuo de confundir Monogamia com
fidelidade, tratando a traição como não-monogamia (o que é contraditório com tratar
swing como Monogamia).
Uma das coisas mais incômodas do livro
é a colocação da polifidelidade como parte intrínseca do Poliamor. Não fica
claro se ela quer dizer que toda relação de Poliamor é de polifidelidade, mas
isso é uma interpretação possível. Além disso, é possível interpretar que o
Poliamor tem ênfase na polifidelidade. Ambas as interpretações são falsas,
ainda mais quando se fala de Brasil. O casamento múltiplo é colocado como algo
central, mas também é uma polêmica no meio poli. Fica a dúvida: de onde ela
tirou isso?
A colocação do RLi e do Poliamor como
dois movimentos é o erro principal do livro, pois coloca coisas que são
especificidades das Relações Livres como se fossem diferenças quanto ao
Poliamor, que seria um movimento diferente, o que é completamente falso.
Perceptivelmente a autora não se propôs a entender os conceitos de maneira
crítica, mas apenas repetindo um discurso que ela não demonstra da onde tirou -
a não ser na parte metodológica, em que ela esclarece que tirou suas conclusões
da análise (que ela diz que é crítica, mas que é acrítica) do grupo sulista do
RLi. Agora se questiona, como ela pretende falar do Poliamor se não participou
de nenhum grupo que se identifica como poli? Ela simplesmente reproduz o
estereótipo que um setor RLi inventou sobre o Poliamor, o que faz da obra algo que é
mais uma propaganda RLi do que uma verdadeira análise científica. Na
argumentação de Bourdieu, ela acaba se tornando um instrumento do que pretende
estudar. Ela chega a chamar Splendor, um filme claramente poliamorista, de um
filme RLi.
O livro acaba de maneira frustrante.
Não traz nada de profundo sobre o RLi ou o Poliamor, apenas umas pequenas
localizações pós-modernas que vêm de uma avaliação superficial do tema.
Infelizmente ela não responde aos questionamentos da maioria dos leitores que
procurariam esse livro, apenas pincela por alto as questões envolvendo o tema,
mas deixa no ar; ou talvez acredite que respondeu com um entrançado palavreado
acadêmico e pós-moderno, que, de fato, não dizem nada mais do que já foi dito
antes.
Mas não posso deixar de louvar o fato
de que a autora se dedica a descaracterizar a visão evolucionista do
comportamento humano, visão esta que ignora contextos históricos e políticos para
simplesmente impôr uma falsificação histórica, como se tudo fosse um caminho linear
de desenvolvimento. Colocar o contexto histórico e social, bem como suas
tensões, como elemento central do comportamento humano é alvo valiosíssimo.
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