sexta-feira, 26 de junho de 2015

Crítica ao Livro "Poliamor e Relações Livres: Do Amor À Militância Contra a Monogamia Compulsória"

Recentemente foi lançado o livro "Poliamor e Relações Livres: Do amor à militância contra a Monogamia compulsória". Ele foi recebido com certa euforia no meio não-monogâmico, especialmente no meio RLi. Bom, eu o li; e o texto a seguir é a avaliação que fiz do livro. Espero que a crítica sirva para melhorar o trabalho dos que se dispõem a estudar o assunto e que sirva para desfazer algumas confusões do público.




O texto começa colocando muito bem qual será seu erro fundamental: analisar a partir dos discursos e não das práticas. Como demonstro na minha monografia, é impossível estudar o poliamor apenas do ponto de vista dos discursos. Além disso, há todo um espectro visível das Relações Livres que não está presente no discurso oficial. Também é importante localizar que essa é uma abordagem possível, mas que precisa de um estudo aprofundado da prática para não cair no idealismo e na credulidade, tornando-se mero reprodutor de discursos construídos como se fossem expressão direta da realidade, ou como se não houvesse uma realidade fora do discurso, o que já está mais que provado que não é verdade.

Por causa desse erro teórico fundamental, o livro qualifica o poliamor como um movimento, como se esse fenômeno amplo se resumisse apenas a seu movimento organizado e como se, a partir do momento em que surge o termo, estaria fundado o movimento - o que é um tremendo erro. Além de as origens da significação atual do poliamor serem na década de 1990 (e não de 1980, como afirma o livro), o movimento poliamorista só foi surgir muito depois.

Como demonstro na minha monografia, o termo foi cunhado para dar nome a práticas que pré-existiam a ele e sobre as quais não se havia um discurso, ou seja, havia uma prática mais ampla que a terminologia do poliamor. Se basear, portanto, na terminologia ou nos discursos é reduzir o poliamor de maneira brutal. Isso gera erros fortes, como tratar a compersão como uma invenção dos poliamoristas e não mais uma categoria criada para nominar uma experiência concreta. Ao mesmo tempo, faz com que o foco do discurso poli na afetividade - consequência de não haver nenhuma outra forma de não-monogamia que dê conta disso - pareça que a prática poliamorista seja focada no afeto múltiplo, o que não é verdade para todos. Isso vai servir à frente para justificar críticas improcedentes ao Poliamor, como o tratamento da polifidelidade como se fosse a totalidade do Poliamor.

Mas nem precisamos chegar a isso tudo, por que o livro possui o poliamor praticamente apenas no nome. Ele se restringe a falar centralmente do RLi e a partir do discurso de alguns RLis. O nome "poliamor" na capa é apenas um atrativo para os desavisados.

Pretendo, nessa crítica, não entrar em todos os aspectos problemáticos, como a redução da colonização do século XVIII a uma biopolítica e à normalização, conceitos que nem ao menos são explicados... Meu foco aqui é o Poliamor.

É interessante como o estudo tem bases teóricas tão contraditórias e até questionáveis... Engels é citado, na sua obra mais criticada nas ciências sociais, ao lado de uma versão ultra idealista da visão foucaultiana. Um verdadeiro Frankenstein teórico.

Um conceito problemático é o de Estado incluindo família, igreja, escola e medicina. Essa visão trata como se fossem parte de uma mesma instituição um governo de uma cidade e a atuação de médicos privados ou mesmo de pais sobre os filhos. Isso é coerente com a leitura foucaultiana, mas é uma das partes piores de se apropriar.

A visão também que qualquer exigência ao Estado é uma forma de sujeição é extremamente problemática e sustenta uma posição dicotômica que chega a ser pueril: ou não se exige e se "rebela" ou se exige e se "sujeita". Infelizmente, para muitos, isso é uma visão básica. Ainda mais com essa expansão do Estado para tantas áreas, exigir delas reconhecimento é impôr ao "Estado" a nossa existência, com todas as contradições que isso impõe à mononormatividade. Mas como ela não trabalha nem com "mononormatividade", nem com "polifobia", fica invisível para ela a necessidade da busca por reconhecimento e direitos.

Em determinado momento a autora comete o terrível erro de tratar de polyfamilies como se fosse um termo exclusivamente utilizado para famílias com polifidelidade. Isso cumpre um triplo papel negativo:

primeiro, de confundir quem tem contato com o termo; segundo, por insistir na definição de família (pelo menos no campo da família por associação) como um núcleo exclusivista (que ela apenas expandiu para mais de uma pessoa); e, terceiro, por passar a impressão de que polifidelidade e Poliamor são sinônimos, o que é absolutamente incorreto (ao contrário, os estudos sobre Poliamor no Brasil apontam a escassez de polifiéis e mesmo a rejeição da polifidelidade pela maioria dos poliamoristas).

A concepção de heteronormatividade para tratar da questão da não-monogamia é também uma opção problemática. Ou o Poliamor é uma orientação sexual (mas aí como ser poli e hetero como muitos somos?) ou a normatividade que diz respeito à Monogamia é algo que deve ser entendido particularmente. Não se pode tratar também como se a Monogamia não fosse um fato social próprio, com suas características próprias... Afinal, sociedades polígamas são igualmente heteronormativas, mas não são monogâmicas. É um fato premente que a heteronormatividade não é necessariamente monogâmica e tratá-la assim é capitular ao etnocentrismo, a visão de como se nosso povo fosse o ponto de vista do "universal".

Chamar também o preconceito de um casal swinger com um casal RLi de heteronormatividade é tremendamente confuso - um casal swinger pode não ser hetero e sua discriminação nada tinha a ver com heterossexualidade e vidas LGBT. Afinal, os swingers não são monogâmicos, pelo simples fato de que a Monogamia é uma relação de exclusividade afetiva e sexual a dois - e o swing não tem exclusividade sexual.

Esconder o poder da ideologia monogâmica e da instituição monogâmica tira o papel real que tem a ruptura com ela - é preciso falar de mononormatividade e polifobia. O casal não-monogâmico, swinger, pode ser polifóbico com quem rompe a barreira da exclusividade afetiva, que é o grande ponto de ruptura contemporâneo que o Poliamor representa. Mais que sexo, rompemos com a exclusividade afetiva a dois - e isso que é verdadeiramente ameaçador para o status quo, pois é monogâmico.

É também incômoda a forma idealizada com que se fala da teoria queer e mesmo que se a tenha como verdade. Ela surge criticando que se ponha algo como verdade e que se tenha categorias coletivas, além de Identidades, fazendo com que a Luta seja no micropoder, nas "dobras" do poder (não lembra power rangers?), rejeitando o reconhecimento social e a luta por direitos como um centro de atuação. Ou seja, na realidade, é uma teoria esquizofrênica e desmobilizadora, retira dos oprimidos o compromisso da luta contra suas opressões pois não se identificam nas categorias que objetivamente existem na sociedade ou que devem existir para dar forma à luta. É uma ideologia da derrota e da completa ausência de auto-conhecimento e mútuo reconhecimento.

Um erro também premente no discurso da autora é a ideia de que a não-monogamia se encontra espalhada pela sociedade, rejeitando o termo "oculta" para caracterizar as práticas não-monogâmicas. Ora, mas isso é um completo absurdo. É evidente para qualquer um com alguma experiência no Poliamor que a maioria das relações são feitas às escondidas de parentes, amigos e colegas de trabalho, principalmente por causa do preconceito que se sofre. É também evidente em todas as nossas elaborações que a maioria das pessoas identifica monogamia e relacionamento como sinônimos, não chegando ao menos a conceber a possibilidade de uma relação não-monogâmica. Mas essa classificação absurda vem do engano ingênuo de confundir Monogamia com fidelidade, tratando a traição como não-monogamia (o que é contraditório com tratar swing como Monogamia).

Uma das coisas mais incômodas do livro é a colocação da polifidelidade como parte intrínseca do Poliamor. Não fica claro se ela quer dizer que toda relação de Poliamor é de polifidelidade, mas isso é uma interpretação possível. Além disso, é possível interpretar que o Poliamor tem ênfase na polifidelidade. Ambas as interpretações são falsas, ainda mais quando se fala de Brasil. O casamento múltiplo é colocado como algo central, mas também é uma polêmica no meio poli. Fica a dúvida: de onde ela tirou isso?

A colocação do RLi e do Poliamor como dois movimentos é o erro principal do livro, pois coloca coisas que são especificidades das Relações Livres como se fossem diferenças quanto ao Poliamor, que seria um movimento diferente, o que é completamente falso. Perceptivelmente a autora não se propôs a entender os conceitos de maneira crítica, mas apenas repetindo um discurso que ela não demonstra da onde tirou - a não ser na parte metodológica, em que ela esclarece que tirou suas conclusões da análise (que ela diz que é crítica, mas que é acrítica) do grupo sulista do RLi. Agora se questiona, como ela pretende falar do Poliamor se não participou de nenhum grupo que se identifica como poli? Ela simplesmente reproduz o estereótipo que um setor RLi inventou sobre o Poliamor, o que faz da obra algo que é mais uma propaganda RLi do que uma verdadeira análise científica. Na argumentação de Bourdieu, ela acaba se tornando um instrumento do que pretende estudar. Ela chega a chamar Splendor, um filme claramente poliamorista, de um filme RLi.

O livro acaba de maneira frustrante. Não traz nada de profundo sobre o RLi ou o Poliamor, apenas umas pequenas localizações pós-modernas que vêm de uma avaliação superficial do tema. Infelizmente ela não responde aos questionamentos da maioria dos leitores que procurariam esse livro, apenas pincela por alto as questões envolvendo o tema, mas deixa no ar; ou talvez acredite que respondeu com um entrançado palavreado acadêmico e pós-moderno, que, de fato, não dizem nada mais do que já foi dito antes.


Mas não posso deixar de louvar o fato de que a autora se dedica a descaracterizar a visão evolucionista do comportamento humano, visão esta que ignora contextos históricos e políticos para simplesmente impôr uma falsificação histórica, como se tudo fosse um caminho linear de desenvolvimento. Colocar o contexto histórico e social, bem como suas tensões, como elemento central do comportamento humano é alvo valiosíssimo.

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