quarta-feira, 20 de maio de 2015

O Que é Polifobia? (Parte 2)



Muita gente poli reclama do preconceito, mas nem sempre tem noção clara do quão abrangente a opressão que sofremos pode ser. Esse texto é uma continuação deste aqui (ele é apropriado para você que tem dúvida sobre se a polifobia é mesmo uma opressão ou não)

Neste texto, vou me ater às características mais comuns de se ver da polifobia (o que, com frequência, envolverá outras formas de opressão com as quais estou familiarizado). Claro que esse não é e nem pretende ser um texto final sobre o assunto, mas, mais uma base para estudos futuros.


Vale localizar aqui que o fato de que a polifobia se combina com outras formas de opressão de maneira nenhuma reduz seu "status" como opressão: toda opressão se combina com outras. A mulher negra sofre uma combinação de machismo com racismo e isso não diminui a importância de se entender o racismo nem o machismo.

************ Parte Mais Teórica e Abstrata (se não se interessar, pode pular)

Bom, eu diria que as opressões se dividem em dois grupos: as estruturantes e as desviantes. Essa classificação é minha, que fique claro, mas a acho útil para se elaborar sobre o tema.

As opressões estruturantes (não confundir com estruturais, pois toda opressão é estrutural) são aquelas em que o indivíduo é enquadrado, de nascença, num grupo social por alguma característica natural, biológica, que determina que ele deve ter uma formação específica e um lugar específico na sociedade. Nesse perfil se enquadram o machismo e o racismo, por exemplo. É claro que, caso o indivíduo desvie de seu papel social, ele sofrerá preconceitos específicos - mas a questão é que, se ele não se desencaixar, vai sofrer do mesmo jeito, por que o grupo social do qual ele faz parte (mulher, negro, etc) é desprivilegiado.

As opressões desviantes são aquelas em que o grupo social ao qual a pessoa pertença (seja de natureza biológica ou socio-comportamental) desvia da norma esperada para o grupo social que aquela pessoa deveria pertencer, a enquadrando num grupo que, segundo a ordem social, não deveria existir. Esse é o caso de polis e LGBT. Para a sociedade, nós não deveríamos existir, pois somos a negação de estruturas fundamentais da sociedade (o papel do homem e da mulher no caso dos LGBT, e a monogamia no caso dos polis).

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Entendido isso, perguntamos, como é a polifobia?

Primeiro, Partamos do básico: segundo a sociedade, nós não só não deveríamos existir, como, para muitos, não existimos.

Por isso, muitas vezes, nossa orientação ou opção poli é tratada como "uma fase", " coisa de jovem" ou algo que praticamos por que "não encontramos o amor verdadeiro" ou " não amamos de verdade". Às vezes, a existência de ciúmes da nossa parte é tratada como se fosse uma evidência de que não somos polis "de verdade" e que, como "todo mundo que ama sente ciúme", estaríamos nos enganado vivendo dessa maneira, e agredindo nossa mais profunda natureza (que, segundo essas pessoas e a sociedade de conjunto, é a "natureza humana", a monogamia).

Mas isso é um passo à frente. Existem pessoas que negam que ao menos estejamos de fato praticando poliamor; afirmam que estamos apenas usando um "termo bonito" para esconder que na verdade não queríamos "nada sério", estamos atrás apenas de sexo, "putaria", etc. Essas pessoas negam a realidade, fogem de admitir o fato de que nos envolvemos afetivamente com nossxs parceirxs. Para elas é inconcebível uma relação real que não seja monogâmica. Para essas pessoas relacionamento e monogamia são sinônimos (ou, pelo menos, os relacionamentos sérios). E, de fato, a sociedade de conjunto trata monogamia e relacionamento como sinônimos.

Em quase todos os filmes e produtos midiáticos em geral, relacionamento e monogamia são dois nomes da mesma coisa. Poucos são os que admitem a possibilidade real de se apaixonar por duas pessoas ao mesmo tempo - e, mesmo nesses produtos, geralmente há uma escolha por um dos dois parceiros românticos possíveis, mesmo que no meio do caminho haja envolvimento com os dois ao mesmo tempo (o que é sempre visto como uma traição, uma transgressão, algo ruim, pecaminoso, que tem que ser resolvido, mesmo que ninguém tenha em momento algum dito que as relações eram monogâmicas. Parte-se do pressuposto de que relação é igual a monogamia). O final feliz é sempre a dois. O final triste é sempre a um.



Por causa disso, também, muitas pessoas associam poliamor (e não-monogamia, em geral) a traição. Se achar que poliamor não existe já é ver como uma coisa "menor", "sem valor"; essa postura é, no entanto, ainda mais agressiva. Trata-se como se fosse uma desonestidade dx poli viver uma relação assim. Meu caso explicita bem isso: inconformada com o fato de eu estar duas mulheres no mesmo ambiente, minha mãe se aproveitou da minha ausência para dizer a elas que elas "não precisavam passar por isso", como se fosse alguma forma de humilhação, como se eu as estivesse traindo "na cara delas". Ou seja, minha mãe partiu para uma ação concreta que buscava desmoralizar a mim e sabotar meus relacionamentos. Para minha sorte, nenhuma delas tinha dúvidas ou estava " experimentando" - eram ambas polis convictas. Mas esse caso é sintomático de como essa associação pode levar à ação concreta das pessoas ao nosso redor em sabotar nossas relações.

Sem contar, é claro, quando estamos mal com alguma coisa da nossa relação (principalmente quando é ciúme) e as pessoas vêm logo dizer que o poliamor é o problema e que "na verdade" deveríamos abandonar esse negócio de poliamor e viver uma relação fechada tradicional. O quanto temos certeza de que queremos o poliamor não importa, pois poliamor não seria uma relação de verdade. Isso dificulta para que possamos conseguir apoio, compreensão e respeito para nossos problemas.

Toda forma de dizer que poliamor é outra coisa que não poliamor chamo de apagamento polifóbico.

É perceptível, com isso, que a mono normatividade nos pressiona o tempo todo a nos negarmos e aceitarmos estar em uma relação monogâmica, por mais que nos sintamos nos negando fazendo isso. Isso afeta não só o tipo de relação que escolhemos, mas o quanto de ciúmes sentimos, já que essa pressão reforça toda a criação que tivemos que associa relacionamento como monogamia.

Ah, e é claro, somos educados desde pequenos a ter ciúmes, a achar que temos que disputar nossos amores com as outras pessoas, que o afeto de outras pessoas é prejudicial para nosso relacionamento, que o amor vem em quantidade limitada, que não-monogamia uma coisa feia e errada, que ela é traição e que, portanto, sempre que nossos parceiros estão com alguém estamos sendo "traídos", colocando uma carga inconsciente negativa no poliamor mesmo que o termo nunca seja denominado.

X poliamorista é vistx como promíscux, como um predador sexual, como alguém que quer o completo bunda-lelê e não quer nada sério. Isso nos ataca por dois lados: de um, somos tratados como se estivéssemos sempre "na prateleira", alguém para se transar e manter algum afeto... Até que chegue uma relação fechada na vida do monogâmico e sejamos guardados, esquecidos até que a relação acabe e a pessoa venha nos procurar. Isso causa um mal estar, uma baixa na auto estima, um sentimento de rejeição, muito grandes... Na prática, somos tratados como objetos sexuais à disposição para quando não houver uma relação monogâmica - essa sim "séria", com "compromisso". Por essa visão, também, é comum que monos que se relacionam com polis nos tratem como um relacionamento menos relevante, que funciona até que alguém outro proponha uma relação "de verdade" - monogâmica. Aí, mesmo que tenhamos nos envolvido profundamente, somos trocados por uma pessoa nova, com menos envolvimento, só por que a relação com aquela pessoa seria monogâmica - e conosco não.

Por outro lado, também somos vistos como ameaças potenciais a qualquer relacionamento (especialmente mulheres) monogâmico ao nosso redor, como se fôssemos predadores sexuais só esperando para dar o bote, criando situações, dando em cima, dando mole, etc. É uma clara associação com a ideia de traição, como se todo relacionamento não monogâmico fosse, de fundo, traição - logo, por sermos polis, somos potenciais fura-olho... Ou, em alguns casos, possíveis amantes! Para alguns, justamente por não querermos a monogamia, não queremos um relacionamento "de verdade" e, por isso, somos bons "amantes", pois, conosco, não é preciso ter qualquer compromisso ou cuidado.

Chamo esse esvaziamento do poliamor, nos tratando como seres meramente sexuais, sem seriedade afetiva, e que se pode " botar na prateleira", descartáveis, quase sem subjetividade afetiva, de hipersexualização do poliamor (algo que também acontece muito com LGBTs, negros e as mulheres que não se enquadram no perfil "pra casar").

Mas isso é apenas parte do que se passa no campo das relações amorosas.

No campo profissional, somos mais vítimas de assédio sexual (mulheres, principalmente, por motivos óbvios, ainda mais se forem bis), somos tratados como pessoas menos sérias e responsáveis e, por isso, é provável que não sejamos contratados para diversas empresas e cargos, e que não nos sejam oferecidos projetos considerados mais sérios. Há casos também de pessoas polis que foram demitidas quando seus chefes descobriram. Além disso, muitas vezes a hipersexualização no local de trabalho gera uma fuga dos outros trabalhadores de nós, com medo de que demos em cima deles, especialmente se formos homens heteros quanto a mulheres.

A hipersexualização é obviamente muito mais forte quando combinada com outras opressões, como o racismo e a LGBTfobia, por exemplo. Um homem negro ou mulher negra (essa mais que aquele) que seja poli vai ser vistx de maneira hiper sexualizada ainda mais que um homem ou mulher brancxs, aumentando as chances de abuso emocional e de assédio sexual.

Em termos de direitos trabalhistas e sociais é que a coisa fica ainda mais séria. Polis só podem oferecer seus direitos de casamento ou união estável a uma única pessoa das quais se envolve. Logo, uma grande quantidade de polis fica descoberto em caso de morte de uma parceirx, no caso de nascimento de uma criança, no caso de separação... E os filhos de um trial só poderão herdar algo de um dos pais/mães... Ainda somos discriminados para adoção de crianças e doação de sangue, também, por exemplo.

Em diversos ambientes somos forçados a esconder nossa Identidade, como na família e em escolas.

É visto com tremenda inaceitação irem duas pessoas no dia dos pais ou das mães das escolas (ou irem três ou mais pessoas para uma reunião de pais), professores polis são considerados "maus exemplos", e toda escola ensina a família monogâmica como natural. Não há qualquer preocupação com evitar o bullying que uma criança de família poli pode sofrer na escola caso a identidade de seus pais seja exposta.

Na família a coisa é ainda mais grave. A maioria esmagadora dos polis não pode levar mais de umx parceirx para reuniões de família, apresentá-los às famílias (ainda que sejam em situações diferentes), ou levá-los para casa quando não moram sós. Muitas pessoas perdem a guarda de filhos (com apoio dos próprios familiares) por serem polis (tratados como " instáveis", "imaturos", " imorais", "irresponsáveis"). Algumas pessoas perdem o contato com a família ao saírem do armário, muitos sofrem violência física, psicológica e até sexual (especialmente mulheres) por causa disso. Muitos pais se utilizam de seu poder financeiro sobre os filhos mais jovens ou em dificuldades para combater sua orientação poli.

Aliás, o caso da violência sexual é emblemático. Se mulheres, em geral, são vistas como causadoras dos estupros que sofrem por causa de roupas ou atitudes, a mulher poli não precisa de nenhuma justificativa: o estupro é justificado por que, na cabeça deles, ela " dá para qualquer um" ou "fica dando mole". Até mesmo a não-consensualidade do ato é posta em questão sob o argumento de que ela é poli. Claro que o drama do estupro e todos esses elementos acontecem com mulheres monogâmicas, mas no caso das polis isso é mais acentuado.

Para moradores de favelas a polifobia é ainda mais acentuada por causa da intensa vigilância social e o convívio espacial apertado.

Todas as religiões monoteístas são contra o poliamor e muitos membros de religiões pagãs e afro, mesmo não tendo nenhum dogma referente a uma monogamia ou poligamia masculina, expressam polifobia na forma de " mensagens do além", que reproduzem todo o discurso polifóbico e muitas vezes tentam trazer o poli de volta à monogamia - o que é especialmente danoso para aquele que crê nessas "mensagens".

Além disso tudo, algumas ofenças específicas de gênero ocorrem de maneira alastrada. O homem tem a vantagem de poder ser visto, num primeiro momento, como polígamo e não como poliamorista, o que pode lhe conceder o status de " pegador" (um privilégio que homens homo ou trans não possuem, por exemplo). Mas isso cai por terra quando é sua parceira (ou parceiro) quem está se relacionando com outro homem - ele cai do status de "pegador" para "corno", " corno manso", que é algo extremamente desmoralizante para um homem. No caso das mulheres é ainda pior, pois são taxadas de "putas", " fáceis", logo de primeira. Quando são bis, são vistas como um menage ambulante, às vezes até por homens poli reproduzindo essa combinação de polifobia com machismo.

Mesmo no meio não-monogâmico estamos sujeitos a sofrer polifobia. É comum que pessoas que vivem relacionamentos polis não queiram se denominar polis (por vários motivos, especialmente por não quererem aceitar o poliamor como modelo viável de relação), o que é uma forma de reproduzir o apagamento. Além disso, é comum também que casais swingers e RA usem polis (especialmente mulheres bis) como um tempero sexual na relação deles, ignorando totalmente os sentimentos dos polis, incorrendo em hipersexualização.

Existem outras expressões de polifobia que eu posso não ter lembrado ou sobre as quais posso ainda não ter pensado. Esse não é um texto final sobre o assunto. Todos devemos pensar sobre isso e elaborar formas de lidar. Se você pensou em alguma coisa ou passou por alguma situação que eu não tenha citado, por favor, comente o post falando disso, OK? Ou envie um email para mim com suas observações.

Se você acha que este texto é exagerado ou que fala de coisas que não existem ou que são outra coisa e não polifobia, talvez você deva rever seus conceitos e aceitar a vivência que você não tem.

No próximo texto tratarei de como a polifobia pode ser combatida.

Vontade e Sabedoria na Guerra!

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